quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Amendoar


A minha Mãe é algarvia. 
Na cozinha, não há grandes estórias para contar. Há lembranças.

A despensa era um cubículo onde eu entrava muitas vezes. Para além de procurar matar a fome ou a gula, era onde me escondia, no escuro. As prateleiras tinham coisas pouco apetecíveis. Raras eram as vezes que via por lá pacotes de bolachas ou outros, brilhantes e atractivos. A minha Mãe cuidava bastante da nossa alimentação e excluía doces e salgados que nos fizessem mal. Posso dizer que fiquei traumatizada, um bocadinho, quando avistava doces em casas de amigas ou família saltava-lhes para cima como uma pequena selvagem. 
No final correu bem, cresceu em mim a vontade de me alimentar de forma saudável e consciente.

A roda dos alimentos era um tema de conversa.

E as amêndoas? As amêndoas torradas eram um luxo.
Era aqui que me chamava. Uma tarefa simples, demolhar as amêndoas com pele em água bem quente; descascar quando a água estivesse capaz de lhe tocar; lavar e secar; tostar na cloche; guardar em frascos. Colocá-los na despensa. Lembro-me de lá ir, a céu aberto e às escondidas. 
Um frasco não durava muito, era uma iguaria viciante. Havia surpresas de desnivelamentos rápidos e eficientes.

A minha Mãe tem umas mãos muito bonitas, não trabalharam muito na cozinha, fizeram outras coisas. Escreveram muito em papel nas noites em que depois de jantarmos se dedicava ao trabalho, a sua paixão.

Mas tiraram a pele a amêndoas, descascaram marmelos, descascaram favas, fizeram arroz-doce da receita da Avó. Está bom e bonito.

Obrigada, 
Cláudia 





quarta-feira, 23 de junho de 2021

Descascar a vida


Estou na cozinha e preparo o molho de tomate que a minha amiga Inês me ensinou. Não exactamente igual, nunca sigo todas as regras, faz parte da minha indumentária como ser humano.

Descasco, retiro a pele e observo a beleza do que fica largado num prato. 

É assim que vamos fazendo à vida, descascamos camadas, retiramos as partes que não interessam para descobrir beleza, no interior, naquilo que ficou para trás. No que já não interessa mas que é belo porque ficou em nós até fazer parte. Viveu um momento, uma emoção ou uma relação e deixou sabedoria.

O que fica são outras camadas, outros ciclos que despertarão para a vida, coração no momento certo. Com a chegada da Primavera, de outros ventos e coragens.




Receita
1 c. sopa de azeite virgem
2 cebolas roxas
3 tomate sem pele
qb pimento vermelho
1/2 curgete pequena sem casca
1 c. chá de sal marinho
1 c. chá de orégãos secos
1qb de pimenta de moinho

Descasque e arranje os legumes. Corte a cebola em gomos, o tomate, a curgete e o pimento em pedaços pequenos.
Coloque uma frigideira ao lume, adicione o azeite e os legumes, deixe alourar por uns minutos.
Tempere com os restantes ingredientes.
Deixe cozinhar em lume baixo, adicione água se necessário, ou tape por uns minutos.
Deixe apurar e triture num robot de cozinha ou com a varinha mágica.

Adicione a massas, estufados, numa base de piza ou numa tartine.

Obrigada,
Cláudia

Dedico este post ao Pedro Carvalho, com coragem.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Do 78 para o 43


Passar de uma casa para outra é como fazer o transbordo no meio do oceano, de um barco para outro.
Fiquei sem a "minha" casa e passei para a "nova minha" casa. Que ainda não o é. Dormir num canto que ainda não cheira a mim, que não respira o meu ar e que não comunica comigo.

E daqui deixo de ter. Passo a ser apenas uma utilizadora de objectos, de um espaço e de uma área que ocupo. Um pé num barco, que se afasta e um pé no outro barco, que resiste desconhecido.

É tudo uma enorme ilusão, nestes tempos em que tememos o presente, mais do que o futuro.
Não meu, nem teu. Afinal o que é ser nosso?

Obrigada,
Cláudia